quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Porém meu ódio é o melhor de mim.

Poema muitíssimo inteligente e atual de Drummond, do livro A Rosa do Povo

A FLOR E A NÁUSEA

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.
Uma flor nasceu na rua!
Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
E soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Sê o melhor no que quer que sejas



    A essência de uma vida realmente humana (porque há de se concordar que nem todo Homo sapiens vive como um ser humano propriamente dito) é uma busca por sentido nessa loucura aleatória de fatos. Em minha busca por um sentido na Curta Existência, há um poema de Pablo Neruda que me inspira: Sê.

Se não puderes ser um pinheiro no topo de uma colina,
Sê um arbusto no vale mas sê
O melhor arbusto à margem do regato.
Sê um ramo, se não puderes ser uma árvore.
Se não puderes ser um ramo, sê um pouco de relva
E dá alegria a algum caminho.

Se não puderes ser uma estrada,
Sê apenas uma senda,
Se não puderes ser o Sol, sê uma estrela.
Não é pelo tamanho que terás êxito ou fracasso...
Mas sê o melhor no que quer que sejas.


    Longe de apoiar valores globalizados da competitividade capitalista (casa mais confortável, roupa mais estilosa, carro do ano, aparência mais “sex appeal”, e outras mesquinharias), Neruda incentiva o auto-refinamento, ou melhor, a tentativa de cada um em chegar ao seu maior potencial, em ser o melhor que poderia ser. Pinheiro, arbusto, ramo ou relva, cada qual em seu meio de possibilidades. Um portador de Síndrome de Down, por exemplo, tem suas devidas limitações, porém com incentivo e correto apoio, pode ser que chegue a trabalhar e constituir família. Talvez não. Mas ainda sim, no caminho da busca, muito poderá ser realizado, poderá ser vivenciado. Sêneca dizia que se uma flecha for mirada no Sol, provavelmente ela não o alcançará, entretanto certamente chegará mais longe se tivesse mirado um alvo à altura do flecheiro.
    Mas como escrevo esse texto e você o lê, é bem provável que nossas possibilidades sejam bem mais favoráveis do que a de uma dessas pessoas "especiais", como se costuma dizer. Cada devido ser humano, capaz de criticar valores superficiais e de criticar suas próprias atitudes habituais, há de convir que precisa melhorar muito no caráter. Caráter, segundo as mais atuais teorias de personalidade* assim como segundo sábios antigos, é a tríade de seus comportamentos para consigo mesmo (famosa auto-estima), para com o próximo e para com a Espiritualidade. Caráter pode ser e é moldado enquanto houver mente sã por um poderoso agente controlador: o famoso Eu. 
    Sim, porque antes de sermos controlados por qualquer força maior escondida atrás de câmeras, impostos ou sistemas, somos controlados pelo Eu. Sentir raiva, amor, inveja, alegria, gula ou tranqüilidade não é uma escolha; mas a maneira como agir perante os sentimentos sempre é uma escolha. Pensamentos geram palavras, que geram ações, que geram hábitos, que geram caráter. Você não pode impedir que pássaros voem sobre a sua cabeça, mas pode impedir que façam ninho, segundo Lutero.
    Impedir sensações, pensamentos e impulsos é impossível (afinal somos fisiologicamente programados para tê-los), mas controlar que dominem nossas ações é possível, apesar de difícil. E acrescento: poder dominar a si mesmo é a Liberdade em sua plenitude, pois o torna verdadeiro Autor de sua própria história.
    Estrada, senda, Sol ou estrela, cada qual com seus defeitos e qualidades. Eu, Aninha, luto com a impulsividade de ações e de palavras, que já me fez magoar muitos (se não todos) de meus queridos. Luta longa e árdua é essa contra si mesmo. Porém, há dois caminhos: o largo e o estreito. O largo é fácil: viver como manda o corpo, as sensações, os sentimentos, os defeitos, a sociedade. É entrar e sair do planeta, personagem plana, folha ao vento, alimento de vermes. O estreito é penoso, demanda autocrítica, esforço, autocontrole, objetivo, sonhos; requer rever conceitos e agenda; exige parar de olhar para o umbigo e começar a enxergar os olhares do próximo.
     Ou será mesmo que basta passar a vida estudando e trabalhando para saldar as dívidas e assistir ao Faustão aos domingos? Vida umbigocêntrica. Pão e circo. Enquanto isso nas esquinas no metrô mais próximo crianças sobrevivem de crack e migalhas de pão, e a minha e a sua indiferença permanecem, se endurecem. Não desejo ser uma folha ao vento, mas um Pinheiro, ou arbusto, ou ramo, ou relva. Independente do tamanho, ser o melhor no que quer que for. E dar alegria a algum caminho.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

Moacyr Scliar

Acredito, sim, em inspiração, não como uma coisa que vem de fora, que "baixa" no escritor, mas simplesmente como o resultado de uma peculiar introspecção que permite ao escritor acessar histórias que já se encontram em embrião no seu próprio inconsciente e que costumam aparecer sob outras formas — o sonho, por exemplo. Mas só inspiração não é suficiente. M.S.


Minha admiração por Moacyr Scliar começou quando na minha 7a série (atual 8o ano) tive de ler um de seus livros infantis de crônicas, Um País Chamado Infância. Com linguagem simples e estilo bem-humorado, conseguiu me prender muito a atenção naquela época. A partir de acontecimentos do dia-a-dia (como o primeiro dente ou a glória do "skate"), ele capta belos sentimentos humanos e especialmente nesse livro, trata com carinho sobre a relação entre pais e filhos. Essa semana ao ler a revista Ser Médico do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, soube que ele falecera em fevereiro desse ano aos 73 anos e decidi recordar um pouco de seu trabalho.
Foi gaúcho, judeu, médico, clínico geral e sanitarista, professor de Medicina da Comunidade na Faculdade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e professor convidado da Brown University e na Universidade do Texas, mas sobretudo foi escritor. Autor de cerca de 80 obras abrangendo romance, crônica, conto, literatura infantil e ensaio, recebeu inúmeros prêmios literários como o Jabuti (1988, 1993 e 2009), o Associação Paulista de Críticos de Arte (1989) e o Casa de Las Américas (1989) . Com tradução em 12 línguas e com adaptações para o cinema, teatro e tevê (como os filmes "Caminho dos Sonhos" e "Sonhos Tropicais"), em 2003 foi eleito para a Academia Brasileira de Letras.
Sua temática trata de fatos do cotidiano enriquecidos com sua tradição judaica, formação médica, a realidade social da classe média e a busca por valores universais e humanistas. Com um estilo de realismo fantástico, parece conseguir tirar uma boa história de qualquer banalidade. Por sua carreira e por seu legado literário o tenho como exemplo a ser seguido. A seguir, parte de uma de suas crônicas:

"A patologia da manhã infantil
À época em que eu era um estudante de Medicina, havia uma curiosa característica no ensino médico: procurava-se mostrar aos alunos os casos mais raros e diferentes, enfermidades cuja descrição só se encontrava em obscuros manuais ou em revistas estrangeiras. Descobri assim que há muitas doenças estranhas. Agora: não tão estranhas quanto as que acometem um garoto de sete anos à hora em que ele tem de acordar e ir ao colégio. Estas doenças têm as seguintes características:
a) São instantâneas. Tão logo o garoto abre os olhos, ele é atacado por uma multidão de vírus, bactérias, fungos, enfim, por toda a fauna que povoa esse planeta e outros.
b) Manifestem-se pelos sintomas mais variados, e, o que mais importante, de conhecimento exclusivo do interessado. Se o garoto diz que está enxergando tudo verde, o que é que você responde? Que ele tem uma visão ecológica das coisas? Que o verde é uma bela cor? Que você está enxergando amarelo, e que portanto você dois formam uma dupla patriótica? E se o garoto diz que está tudo rodando, que é que você faz? Põe-se a rodar ao redor dele, para dar a impressão de que ao menos a autoridade paterna está fixa?
(...)
d) Cessam miraculosamente quando você pronuncia as palavras mágicas. Sim, mas quais são estas palavras mágicas? Sossegue, não se trata de nenhum segredo dos sábios orientais. Tudo o que você tem a dizer é: hoje é domingo, não tem colégio. Pronto. Toda a patologia exótica desaparece como por encanto. O garoto só vai encontrá-la de novo quando se tornar estudante de medicina."

do Livro: Um País Chamado Infância

terça-feira, 21 de junho de 2011

Could you be a Messiah


Could You be healer
To a heart that's been wounded

In a battle that's never seen
Could You be teacher
To a mind of confusion
Tell me what does this all mean
Are You deliverer
Of an imprisoned feeling in chains
Can You set my spirit free
And just one more question

Allow me this question
Could You be Messiah to me
Could You be Messiah to me

Could You be father
To a soul that's been abandoned
By a world to busy to hear
Could You be friend
To a helpless survivor
Can You take away my fears
I heard them all sharing
This newfound conviction in them
Are You all that they make You to be
And just one more question

Allow me this question
Could You be Messiah to me
Please be Messiah to me

Now i've been looking for someone like You
And i'm so tired, i'm tired
I've read every book and i've sang every song
My mind maybe right but my heart feels so wrong
Tell me how much further can my life go along
Which way do the roads lead where do I belong...
Are You forgiver
Of my most unknown secrets
Provider of all that I need
Could You be brother
The one who knows better
Would You now stand in the lead
When all this is over all the thunder and lightning
In the daylight just what will I see
The answers to my questions to all of my questions

Could You be Messiah to me
Could You be Messiah to me
Could You be Messiah
Please be Messiah to me...


domingo, 19 de junho de 2011

Crônica do Amor

"Ninguém ama uma pessoa pelas qualidades que ela tem, caso contrário os honestos, simpáticos e não fumantes teriam uma fila de pretendentes batendo à porta. O amor não é chegado a fazer contas, não obedece à razão. O verdadeiro amor acontece por empatia, por magnetismo, por conjunção estelar.

Ninguém ama outra pessoa porque ele é educada, veste-se bem e é fão do Caetano. Isso são só referências. Ama-se pelo cheiro, pelo mistério, pela paz que o outro lhe dá, ou pelo tormento que provoca. Ama-se pelo tom de voz, pela maneira que os olhos piscam, pela fragilidade que se revela quando menos se espera.

Você ama aquela petulante. Você escreveu dúzias de cartas que ela não respondeu, você deu flores que ela deixou a seco. Você gosta de rock e ela de chorinho, você gosta de praia e ela tem alergia a sol, você abomina o Natal e ela detesta o Ano Novo. Nem o ódio de vocês combinam. Então? Então que ela tem um jeito de sorrir que o deixa imobilizado, o beijo dela é mais viciante que LSD, você adora brigar com ela e ela adora implicar com você. Isso tem nome.

Você ama aquele cafajeste. Ele diz que vai e não liga, ele veste o primeiro trapo que encontra no armário. Ele não emplaca uma semana nos empregos, está sempre duro, e é meio galinha. Ele não tem a menor vocação para príncipe encantado e ainda assim você não consegue despachá-lo. Quando a mão dele toca a sua nuca, você derrete feito manteiga. Ele toca gaita na boca, adora animais e escreve poemas. Por que você ama esse cara? Não pergunte para mim; você é inteligente.

Lê livros, revistas, jornais. Gosta dos filmes dos irmãos Cohen e do Robert Altman, mas sabe que uma boa comédia romântica também tem seu valor. É bonita. Seu cabelo nasceu para ser sacudido num comercial de xampu e seu corpo tem todas as curvas no lugar. Independente, emprego fixo, bom saldo no banco. Gosta de viajar, de música, tem loucura por computador e seu fettucine ao pesto é imbatível. Você tem bom humor, não pega no pé de  ninguém e adora sexo. Com um currículo desse, criatura,  por que está sem um amor?

Ah, o amor, essa raposa. Quem dera o amor não fosse um sentimento, mas uma equação matemática: eu linda + você inteligente = dois apaixonados. Não funciona assim.

Amor não requer conhecimento prévio, nem consulta ao SPC. Ama-se justamente pelo que o amor tem de indefinível. Honestos existem aos milhares, generosos tem às pencas, bons motoristas e bons pais de família, ta assim, ó!



Mas ninguém consegue ser do jeito que o amor da sua vida é! Pense nisso. Pedir é a maneira mais eficaz de merecer. É a contingência maior de quem precisa."


(Arnaldo Jabor)

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Antoine de Saint-Exupéry

"De que nós estamos precisando para nascer para a vida? Precisamos nos dar. Sentimos obscuramente que homem não pode se comunicar com homem senão através de uma mesma imagem. Os pilotos encontram-se quando lutam na mesma linha aérea. Os hitlerianos quando se sacrificam pelo mesmo Hitler. (...) Mas não precisamos de guerra para encontrar o calor do ombro do próximo se corremos pelo mesmo objetivo. A guerra engananos. O ódio não acrescenta coisa alguma ao calor da corrida (...) Quando nos encaminharmos na direção certa, aquela que tomamos na origem, ao despertarmos do barro, somente então seremos felizes. Só então poderemos viver em paz, porque o que dá um sentido à vida dá um sentido à morte." (A Paz ou a Guerra?) 


Ano passado ganhei um dos melhores presentes de aniversário da vida: um livro que se tornou o meu preferido. Chama-se "Um Sentido Para a Vida" cujo autor é o título desse post e autor da conhecidíssima obra "O Pequeno Príncipe". Poucos sabem que ele também escreveu obras para adultos e eu só o soube nesse dia, como também que seus escritos são dignos de um título de excelência.
Antoine de Saint-Exupéry (1900-1944) foi escritor, jornalista, ilustrador e piloto durante a Segunda Guerra Mundial. Como piloto e combatente, realizou missões na Rússia, Espanha, Egito, França e outros e as reportou em cartas a jornais franceses e canadenses. Algumas dessas cartas estão contidas no livro que citei, e demonstram todo o horror pela guerra e o ódio por um tempo que transforma os homens em robôs e lhe tira até o tempo para pensar. Em algumas das cartas, ele descreve de forma poética a experiência de voar; em outras descorre sobre o tema da modernidade, enfatizando a importância de "se dar um sentido à vida dos homens."
Em 31 de julho de 1944, Saint-Exupéry decolou da Córsega numa missão de reconhecimento sobre a França ocupada com destino a Grenoble. Devia estar de volta à 0h30. Às 3h30, foi oficialmente dado como desaparecido. Em abril de 2004 foram encontrados destroços de avião no Mar Mediterrâneo, próximo de Marselha, que foram identificados como sua aeronave. Para saber mais de sua morte e reconhecimento: http://www.consciencia.net/2004/mes/05/nyt-saint-exupery.html
Admiro suas obras pela poesia e pela profundidade. São universalizantes pois tocam em princípios humanos como a guerra e sentido da vida e são recheadas de frases de efeito ("Tu te tornas eternamente responsável pelo que cativas"). São delicadas, originais e contemporâneas. Tudo isso tem um nome: genialidade.

Trechos do livro:

"Escutem, meus amigos americanos, parece que há algo de novo em formação no nosso planeta. O progresso material dos tempos modernos uniu realmente a humanidade por uma espécie de sistema nervoso. Os contatos são inúmeros. As comunicações são instantâneas. Estamos materialmente ligados como as células de um mesmo corpo. Este corpo, porém, não possui a mesma alma. Este organismo ainda não tomou consciência de si próprio. A mão não sente que pertence ao mesmo corpo dos olhos." (Pleito pela Paz)

"Depois, em torno de mim, tudo pulou.
Não consigo falar sobre os dois minutos que se seguiram. Na minha lembrança só emergem pensamentos rudimentares, esboços de raciocínios, observações simples. Não posso fazer drama porque não existiu drama. Não posso senão alinhar meus pensamentos numa espécie de ordem cronológica.
Em primeiro lugar, eu não estava mais avançando. Tenho obliquado sobre a direita para corrigir uma súbita inclinação, vi a paisagem imobiliar-se pouco a pouco e depois parar definitivamente. Não estava ganhando terreno. Minhas asas não mais mordiam o desenho do solo. Via a terra oscilar, rodar, mas sempre no mesmo local: o avião estava derrapando como sobre uma engrenagem gasta." (O Piloto e as Forças da Natureza)

"Poderá se confundir essa aceitação resignada com espírito de sacrifício ou grandeza moral. Seria contudo um grande erro. Os elos de amor entre o homem de hoje e os seres e as coisas são tão pouco estreitos, tão pouco densos que o homem já não sente a ausência como outrora. Lembro aquela terrível história judaica: 'Vais então para lá? Como ficarás longe! - Londe de quê?' O 'onde' que eles deixaram não é senão um feixe de hábitos. Nesta época de divórcios, os homens divorciam-se das coisas com idêntica facilidade. Mudam com facilidade de geladeira e de casa, também. E de mulher. E de religião. E de partido. Nem sequer se pode ser infiel: infiel a quê? Longe de onde e infiel a quê? Deserto de homens." (Carta ao General 'X')

quinta-feira, 9 de junho de 2011

Toda discussão tem pelo menos dois lados

Enxergar mais do que um é menos confortável e mais angustiante. Demanda maturidade e responsabilidade.

- Oh não, de repente tudo se tornou neocubismo.
- Tudo começou quando Calvin envolveu seu pai num pequeno debate! Rapidamente Calvin viu os dois lados da questão! Depois, coitado do Calvin, começou a ver os dois lados de TUDO!
- O tradicional ponto de vista singular foi abandonado! A perspectiva foi fraturada!
- As vistas múltiplas providenciam muita informação! É impossível de se mexer! Calvin rapidamente tenta eliminar todas as perspectivas menos uma!
- Funciona! O mundo cai numa ordem reconhecível!

- Você ainda está errado, pai.

domingo, 29 de maio de 2011

Lanterna de Diógenes

A mitologia grega, assim como de outros povos, busca expressar através de suas histórias princípios e problemáticas da vida humana. É espantoso como podem se mostrar contemporâneas tais lições e ao mesmo tempo como muito se perdeu da admiração à tão rica cultura. Conta-se a história do filósofo Diógenes de Sínope (de quem Alexandre Magno teria dito “se não fosse Alexandre, queria ser Diógenes”) que ele saia em plena luz do dia pelas ruas da cidade com uma lanterna na mão, procurando por homens verdadeiros.
Homens verdadeiros, auto-suficientes e virtuosos. Uma escritora adventista norte-americana, Ellen White, também escreveu: "A maior necessidade do mundo é a de homens - homens que se não comprem nem se vendam; homens que no íntimo da alma sejam verdadeiros e honestos; homens que não temam chamar o pecado pelo seu nome exato; homens, cuja consciência seja tão fiel ao dever como a bússola o é ao pólo; homens que permaneçam firmes pelo que é reto, ainda que caiam os céus." Se preferir, troque “pecado” por “maldade” em sua leitura.
Há momentos em que também sinto essa falta de homens de valor, sinceros, corretos, que não vendam sua fidelidade. A verdade é que comecei amizade com centenas de pessoas durante a vida, porém a maioria é tão fugaz como uma estrela cadente, e muitas vezes infelizmente por falta de lealdade. Raras são as amizades em que mesmo com pouco contato, pode-se confiar e saber o que esperar. Raríssimas são aquelas em que a abnegação pelo bem do outro é praticada.

“Amigo é feito casa que se faz aos poucos 
e com paciência para durar pra sempre 
Mas é preciso ter muito tijolo e terra
 preparar reboco, construir tramelas 
Usar a sapiência de um João-de-Barro(...) 
Amigo é pra ficar, se chegar, se achegar,
 se abraçar, se beijar, se louvar, bendizer
 Amigo a gente acolhe, recolhe e agasalha 
e oferece um lugar para dormir e comer 
Amigo que é amigo não puxa tapete
 oferece pra gente o melhor que tem e o que nem tem, 
quando não tem, finge que tem, 
faz o que pode e o seu coração reparte que nem pão.” 


(canção de Zélia Duncan)





Aos meus sinceros, queridos e raros amigos, constelações que me guiam, meu amor e gratidão.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

A flor e seu nome

Mas o que impressiona mesmo no amor-perfeito é o nome. Que responsabilidade, meu filho! Há por aí uma planta chamada de amor-de-um-dia, que não carece muito esforço para ser e acontecer, como doidivanas. Outra atende por amor-das-onze-horas e presume-se como sua vida é folgada. Há também amor-de-vaqueiro, amor-de-hortelão, amor-de-moça, amor-de-negro... muitos amores vegetais que desempenham função limitada. Mas este aqui não tem área específica, não se dirige a grupo, ocasião, profissão. É absoluto, resume um ideal que vai além do poder das flores e dos seres humanos.
Que sentirá o amor-perfeito, sabendo-se assim nomeado? Que tristeza lhe transfixará o veludo das pétalas , ao sentir que os homens que tal apelação lhe dera não são absolutamente perfeitos em seus amores? Que aquele substantivo, casado a este adjetivo, sugere mais aspiração infrutífera da alma do que modelo identificável no cotidiano?
A tais perguntas o sóbrio amor-perfeito não responde. O outono tampouco. Talvez seja melhor não haver resposta.

(Carlos Drummond de Andrade)

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Epitáfio

As palavras de amizade e conforto podem ser curtas e sucintas, mas o seu eco é infindável. 
(Madre Teresa de Calcutá)

    A paixão pelos livros é um princípio que aprendi com meu pai. Aprendi com as noites em que ele me lia um livro antes de dormir, pelo exemplo e pelas incansáveis recomendações. Uma das últimas recomendações foi A Obra Final, de Randy Pausch. Não é muito conhecido e tem uma capa engraçada como se tivesse um barbante amarrando, mas me ofereceu uma reflexão muito interessante.
   O autor escreveu o livro após descobrir que o tratamento que fizera contra o câncer pancreático não funcionara e lhe restavam alguns poucos meses de vida. Com uma família de três filhos pequenos e uma esposa, preocupado em deixar alguma lembrança para eles e para seus alunos, gravou alguns DVDs, fez uma última palestra na universidade em que lecionava e escreveu a obra com a ajuda de um amigo. Nesse último buscou relembrar alguns sonhos de infância e como conseguira realizá-los durante a vida, como por exemplo, trabalhar para a Disney, e alguns princípios que seguira durante os anos.
   Num dos capítulos, intitulado Sonhos para meus filhos, ele escreve: ”Vi muitos alunos passarem por minhas aulas e conheci muitos pais que não percebem o poder de suas palavras. Dependendo da idade da criança, ou da consciência que tem de si mesmo, um comentário desastroso do pai ou da mãe pode ser tão devastador quanto uma escavadeira. (...) Só quero insistir para que meus filhos encontrem o próprio caminho com entusiasmo e paixão. E quero que sintam como se eu estivesse ali com eles, independentemente do caminho que escolherem.” Apreciei a preocupação de Randy em deixar um legado pós-morte escrito aos filhos e a sua consciência do poder de suas palavras na vida deles.
    Poucos param para lembrar que um dia certamente morrerão. Quando falo que esse assunto é importante, falam que sou mórbida, porém é a crença sobre a morte que define religiões, cultura e conseqüentemente o modo de se viver. Diz Eclesiastes 7:2: “Melhor é ir para a casa onde há luto que para a casa onde há banquete. Porque aí se vê aparecer o fim de todo homem e os vivos nele refletem.” 
    Pare agora. Pense que você vai morrer cedo ou tarde.
    Depois de ter aceitado esse fato, se já não o aceitou, tente pensar em que tipo de legado você deixará às pessoas que estão ao seu redor, especificamente do legado de palavras. Há poucos meses uma querida professora, mãe de amigos meus e uma amiga para mim, faleceu de uma forma inesperada. No meu momento de pesar, busquei lembrar conversas nossas e sinceramente só consegui resgatar memórias boas em que ela se preocupava com meus problemas e me dava conselhos. Uma das últimas memórias foi de uma conversa no MSN em que eu tinha colocado no meu Nick: “Medicina, antes um sonho, hoje nem durmo”; e ela me falou: “quando queremos realizar um sonho, temos que passar muitas noites em claro”. Poderia parecer insignificante, mas aquele incentivo vai ficar guardado na minha memória e sempre que eu tenho que passar alguma madrugada acordada, recordo-me dela e me sinto encorajada.
    Gostaria de ser lembrada com carinho também pelas pessoas ao meu redor, não somente como forma de legado ou tentativa de uma continuidade de vida, mas também para que essas pessoas tenham certeza o quão especiais foram para mim. Para isso, fará diferença como usei minha capacidade de falar e me comunicar, temperados com sinceridade e amor. Talvez essa seja uma das poucas heranças que sejam mesmo válidas de se deixar.


domingo, 15 de maio de 2011

O medo do amor

  Medo de amar? Parece absurdo, com tantos outros medos que temos que enfrentar: medo da violência, medo da inadimplência, e a não menos temida solidão, que é o que nos faz buscar relacionamentos. Mas absurdo ou não, o medo de amar se instala entre as nossas vértebras e a gente sabe por quê. 

  O amor, tão nobre, tão denso, tão intenso, acaba. Rasga a gente por dentro, faz um corte profundo que vai do peito até a virilha, o amor se encerra bruscamente porque de repente uma terceira pessoa surgiu ou simplesmente porque não há mais interesse ou atração, sei lá, vá saber o que interrompe um sentimento, é mistério indecifrável. Mas o amor termina, mal-agradecido, termina, e termina só de um lado, nunca se encerra em dois corações ao mesmo tempo, desacelera um antes do outro, e vai um pouco de dor pra cada canto. Dói em quem tomou a iniciativa de romper, porque romper não é fácil, quebrar rotinas é sempre traumático. Além do amor existe a amizade que permanece e a presença com que se acostuma, romper um amor não é bobagem, é fato de grande responsabilidade, é uma ferida que se abre no corpo do outro, no afeto do outro, e em si próprio, ainda que com menos gravidade. 

  E ter o amor rejeitado, nem se fala, é fratura exposta, definhamos em público, encolhemos a alma, quase desejamos uma violência qualquer vinda da rua para esquecermos dessa violência vinda do tempo gasto e vivido, esse assalto em que nos roubaram tudo, o amor e o que vem com ele, confiança e estabilidade. Sem o amor, nada resta, a crença se desfaz, o romantismo perde o sentido, músicas idiotas nos fazem chorar dentro do carro. 

  Passa a dor do amor, vem a trégua, o coração limpo de novo, os olhos novamente secos, a boca vazia. Nada de bom está acontecendo, mas também nada de ruim. Um novo amor? Nem pensar. Medo, respondemos. 

  Que corajosos somos nós, que apesar de um medo tão justificado, amamos outra vez e todas as vezes que o amor nos chama, fingindo um pouco de resistência mas sabendo que para sempre é impossível recusá-lo.

(Martha Madeiros)

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Não sei brincar em ser café com leite

“Se Deus me presenteasse com um pedaço de vida, deitava-me ao sol, 
deixando a descoberto, não somente o meu corpo, como também a minha alma.
Aos homens, eu provaria quão equivocados estão ao pensar que deixam de se 

enamorar quando envelhecem, sem saberem que envelhecem quando deixam 

de se enamorar.” GGM




Eu não quero um amor pela metade. Eu não como pela metade, não durmo pela metade, eu não tomo banho pela metade, pra que amar se não for por completo? A geração Y vive na era da inconstância e da adaptação, das múltiplas atividades, mil janelas na Internet, muitos amigos e festas, muitos amores. Se fosse um link no meu Wall do Facebook, eu não curtiria essa maneira de se relacionar; e se tivesse a opção, eu a descurtiria.

O ganhador do prêmio Nobel de literatura, Gabriel Garcia Márquez, escreveu certa vez exatamente o desejo que pulsa no meu âmago. "Não sinto nada mais ou menos, ou eu gosto ou não gosto. Não sei sentir em doses homeopáticas. Preciso e gosto de intensidade, mesmo que ela seja ilusória e se não for assim, prefiro que não seja. Quero grandes histórias e estórias; quero o amor e o ódio; quero o mais, o demais ou o nada”. E a meu ver, grandes histórias só se constroem através de paciência, abnegação e integridade de caráter. 

Já escolhi o curso mais cobiçado do vestibular, já dormi a 3 mil metros de altura num frio de menos 5 graus centígrados, já enfrentei problemas familiares que não ouso nem lembrar com freqüência, já falei verdades sem nem parar para ponderar palavras. Nessas ocasiões tive medo, mas a vontade de tentar e fazer história, bem ou mal sucedida, era maior. Alguns chamam isso de coragem, mas às vezes chega a ser tolice. Gosto instintivamente de me dedicar ao que faço; com o amor não poderia ser diferente.

O amor, porém, esse sim me assusta. E esse medo não vem da falta de vontade ou do suposto tolhimento da liberdade, mas antes de não querer ser amada de forma incompleta. Não tenho paciência com mediocridade, em ser a segunda (terceira, quarta) opção ou com formas platônicas de sentir. Prefiro ouvir “não gosto o suficiente de você” do que a desculpa mais manjada do planeta “ o problema sou eu”. Prefiro não me casar jamais, do que o fazer por convenções e não por sentimento. Porém não desejo uma paixão desenfreada que arde em ciúmes e logo se esfria quando encontra outra palha para queimar.

Que comece devagar ou rapidamente, desejo somente que seja sincero e forte o suficiente para que suporte a rotina e as diferenças. Em Amor nos Tempos do Cólera, GGM trabalha (em tom muitas vezes bem-humorado) as universais problemáticas do amor e sexo como casamento, diferenças sociais ou envelhecimento, em meio a um triângulo amoroso mexicano entre fim do século XIX e começo do XX. Quando trata do casamento, traz uma frase genial: o problema do casamento é que se acaba todas as noites depois de se fazer o amor, e é preciso tornar a reconstruí-lo todas as manhãs antes do café. Acredito nesse tipo de reconstrução.

Ao final da história, encontramos um casal de idosos dentro de um quarto de um barco que não pode aportar por estar contaminado com o vibrião da cólera. E eles se amam como que para sempre no ir e vir de um porto a outro. Como meus avós, que tantas vezes reconstruíram o amor deles, desejo esse tipo de amor. Jamais perfeito, jamais incompleto. Eu os vi brigar muitas vezes e se reconciliarem tantas mais; mas sei que a última palavra antes de morrer do meu avô foi "Nina", com ele chamava minha avó.

Se não for para ser assim, que não seja.




domingo, 30 de janeiro de 2011

Império das Idéias

  Essa foi minha última semana de férias e para aproveitar, combinei com uns amigos de assistirmos ao filme A rede social, do diretor Davis Finsher, lançado aqui no Brasil em Dezembro passado. Talvez não por coincidência na mesma época de estréia do longa aqui, a empresa Facebook, através de um novo investimento, valorizou-se em 50 bilhões de dólares. A princípio esperava que a trama mostrasse mais uma idealização de um empresário de sucesso, “self-made”, que através de inteligência e disciplina irrepreensíveis conseguiu alcançar sucesso no mundo dos negócios. Entretanto o filme se supera ao mostrar o lado humano, falho e ambicioso dos dois jovens co-criadores do site, que hoje ultrapassa 500 milhões de usuários.

  Eduardo Saverin, o brasileiro co-fundador, comentou num post a CNBC em Outubro de 2010 que teve a impressão que o filme pareceu ser feito para ser divertido e não fiel aos fatos. Ele enfatizou entretanto o poder da criatividade e do empreendedorismo como base da criação de produtos e empresas transformadores da realidade. “I hope that this film inspires countless others to create and take that leap to start a new business. With a little luck, you might even change the world.”

  A capacidade de captar necessidades, planejar idéias para supri-las e realizar ações inovadoras é o que fez empresas como Facebook surgirem e crescerem. Foi o que fez crescer o conhecimento médico, fez surgir a anestesia ou a penicilina. Como diz Saverin, você pode ser um estudante e transformar o mundo. True innovation is blind. Muitas questões permanecem irrespondidas na busca da cura do câncer ou na assistência de saúde de vítimas da pobreza, por exemplo. E pode ser que estudantes como eu ou você, cheios de ambições e propensos a falhas, poderão vir a encontrar soluções. Dentro do crânio de cada um reside um império.

  Monteiro Lobato escreveu : “Loucura? Sonho? Tudo é loucura ou sonho no começo. Nada do que o homem fez no mundo teve início de outra maneira, mas tantos sonhos se realizaram que não temos o direito de duvidar de nenhum.” Eu desejo nesse meu início de ano letivo que tenhamos em 2011 sonhos e loucuras capazes de transformar o mundo. Espero que não duvidemos de que mudanças e avanços esperam para serem realizados e que trabalhemos todos os dias por isso. Trabalhemos seja na pesquisa científica, seja na realização de projetos sociais, mas que sejamos empreendedores da saúde mundial.

Um pai trata dez filhos, dez filhos não trata um pai

Sabedoria sertaneja



Link do Zezé de Camargo recitando: http://www.youtube.com/watch?v=zPDWETdx-PY

Couro De Boi
Composição: Tedy Vieira / Palmeira

Declamado: 


"Conheço um velho ditado que é do tempo do Zagai 
Diz que um pai trata dez filhos, dez filhos não trata um pai 
Sentindo o peso dos anos sem poder mais trabalhar 
O velho peão estradeiro com seu filho foi morar 
O rapaz era casado e a mulher deu de implicar 
Você manda o velho embora se não quiser que eu vá 
E o rapaz coração duro com seu velho foi falar": 



Cantado:



Para o senhor se mudar meu pai eu vim lhe pedir 
Hoje aqui da minha casa o senhor tem que sair 
Leva este couro de boi que eu acabei de curtir 
Pra lhe servir de coberta onde o senhor dormir 



O pobre velho calado pegou o couro e saiu 
Seu neto de oito anos que aquela cena assistiu 
Correu atrás do avô seu paletó sacudiu 
Metade daquele couro chorando ele pediu 



O velhinho comovido pra não ver o neto chorando 
Partiu o couro no meio e ao netinho foi dando 
O menino chegou em casa, seu pai foi perguntando 
Pra que você quer este couro que seu avô ia levando 



Disse o menino ao pai um dia vou me casar 
O senhor vai ficar velho e comigo vem morar 
Pode ser que aconteça de nós não se combinar 
Esta metade do couro vou dar pro senhor levar



quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Intimidade

Intimidade é uma palavra de cinco sílabas que quer dizer: eis meu coração e minha alma, favor moê-los, fazer deles um hambúrguer. Bom apetite!
É tão desejada quanto temida, difícil de se viver com e impossível de se viver sem. Intimidade também está ligada a três coisas inevitáveis: família, romance e certos amigos. Existem coisas das quais você não pode escapar. E outras das quais preferiria não ver.
Gostaria que houvesse um livro com regras para intimidade. Algum tipo de guia que te avisasse quando você ultrapassasse a linha. Seria bom se pudéssemos prever. Mas a intimidade não pode ser classificada. Você a agarra onde puder e a mantém por quanto tempo puder. E quanto às regras, talvez não exista nenhuma. Talvez as regras da intimidade sejam algo que você tem que definir por si mesmo.

Meredith Grey (Grey`s Anatomy)

terça-feira, 11 de janeiro de 2011

O Labirinto do Fauno

"Melhor é derramar o seu sangue do que o sangue de um inocente"



O complexo comercial de Interlagos, localizado na região sul de São Paulo, realizará entre os dias 13 e 16 de janeiro de 2011 um concurso cultural sobre Contos de Fadas, cujos prêmios serão dois carros 0km. Para saber mais, acesse o blog do Shopping: www.interlagos.com.br/novidades/ Inclusive, se você decidir participar, aviso que concorrerá com minha cunhada que está empenhada nos estudos, logo se esforce (apesar de que já darei pequena ajuda nesse post)!

O concurso me fez lembrar de um dos meus filmes favoritos: O Labirinto do Fauno, do cineasta mexicano Guillermo Del Toro e ganhador de 3 Oscars (fotografia, direção de arte e maquiagem). Para quem não viu, assista o trailer no youtube: www.youtube.com/watch?v=M09mCcVgrsA . Nele é narrada a história de Ofélia (Ivana Baquero), menina dos seus 12 anos, quieta e sonhadora, a qual vive no cenário da sociedade espanhola de 1944, após a guerra civil. Buscando fugir da realidade insuportável do medo do padrasto, da violência social e da preocupação com a mãe grávida, apega-se aos livros e encontra no pensamento mágico, típico da criança, um modo de tentar lutar contra o mal que a cerca.

Um conto de fadas, segundo Sheldon Cashdan, autor de Os Sete Pecados Capitais nos Contos de Fadas, é uma jornada em busca da auto-descoberta. A narrativa do filme assemelha-se a um conto de fadas moderno, e é divida portanto em quatro fases:

1) TRAVESSIA: o Herói, nossa pequena espanhola, vai a uma terra diferente, longe de seu lar. Sua mãe Carmen (Ariadna Gil), grávida do filho de um comandante militar fascista Vidal (Sergi López), vai morar num quartel/fazenda sob o comando dele, um insensível tirano.

2) ENCONTRO: com medo das ameaças que a cercam, Ofélia se fecha em seu mundo de imaginação literária, onde encontra o Fauno, ser meio homem, meio cavalo; meio amigo, meio inimigo. Este revela que a menina é a última de uma raça antiga, uma princesa que retornou e pela qual muito tempo esperou-se.

3) CONQUISTA: desafiada pela criatura, a menina entra numa sequência de 3 desafios a serem completados antes da Lua Cheia, para que receba novamente o trono e possa triunfar sobre o mal que a cerca.

4) CELEBRAÇÃO: não contarei para não estragar o gostinho de suspense; basta dizer que a vitória final é inesperada.

Muitas são as interpretações críticas atribuídas ao filme (se o fauno é ou não real, por exemplo), e a que estou dando é apenas mais uma, não tendo a pretensão gananciosa de estar certa. Porém, acredito que uma obra de arte é boa quando não parece que nós a estamos vendo, mas ela a nós. Sei que consegui recuperar através da protagonista memórias minhas de infância, nas quais me imaginava uma heroína ao conseguir de maneira mágica amenizar a dureza dos fatos e das pessoas. Nesse sentido, O Labirinto do Fauno traz lições aparentemente infantis para o mundo chamado adulto; é como se Ofélia fosse um canal que traz a criança inconsciente escondida (id) para ser encarada novamente pela persona do eu.

Questões além do escopo individual também são tratadas, especialmente sobre a problemática da tirania dos mais abastados, um fenômeno constante na história humana. O comandante Vidal representa o então governo nacionalista-fascista de Francisco Franco o qual apoiava interesses de latifundiários e católicos; enquanto isso espreita na floresta uma guerrilha de rebeldes defensores das necessidades dos trabalhadores. É interessante notar que enquanto os trabalhadores recebem apenas uma porção de pão diária, Vidal e seus convidados em outra cena se deliciam num farto banquete.

Cena complexa, “intensa e visceral” segundo del Toro, que se refere subjetivamente a esse tema, é aquela em que Ofélia, num dos desafios propostos pelo Fauno, encontra o demônio devorador de crianças, O Homem Pálido: http://www.youtube.com/watch?v=n9YD2PFF31E




Repare que o monstro está sentado diante de uma mesa com muitos alimentos, mas se levanta afim de devorar a garota quando ela faminta apenas colhe uma uva. Nas paredes do salão estão figuras que remetem a ícones religiosos como “Saturno devorando seu filho”, do pintor espanhol Goya. Tal cena representa a descoberta pela garota da realidade da privação dos mais necessitados cruelmente imposta pelos abastados e avarentos.

Característica marcante das obras de Goya é o contraste entre tons claros e escuros, a qual serviu de inspiração para a fotografia do filme, em que nas cenas de realidade, a escuridão predominou, enquanto claras eram as cenas fantasiosas. Nas palavras do diretor, era vital se aproximar, de maneira diferente, do mundo real e do imaginário. Um deveria ser frio, inclusive glacial, enquanto que o outro tinha que ser muito mais quente, mais vivo, desde o ponto de vista estético. O contrate e a aproximação dos dois mundos é outro ponto chave para o entendimento do filme como estética ou como narrativa.

Contos de fadas não precisam ter uma lição de moral final, porém muitos a apresentam, o que acredito se repetir nesse conto em particular. Se houver uma palavra para resumi-lo, esta seria conflito; conflito de tonalidades entre luz e escuridão, conflito ente o feminino e o masculino (Mercedez e Vidal), entre bondade e tirania, entre fome e abundância, conflito interno entre os elementos contraditórios da própria mente, conflito externo entre explorados e exploradores. Entre todos esses, Ofélia assim como cada personagem teve de fazer uma escolha; mas como criança ela representa a esperança, pois “a inocência possui um poder que o mal não imagina”.