quinta-feira, 7 de julho de 2011

Moacyr Scliar

Acredito, sim, em inspiração, não como uma coisa que vem de fora, que "baixa" no escritor, mas simplesmente como o resultado de uma peculiar introspecção que permite ao escritor acessar histórias que já se encontram em embrião no seu próprio inconsciente e que costumam aparecer sob outras formas — o sonho, por exemplo. Mas só inspiração não é suficiente. M.S.


Minha admiração por Moacyr Scliar começou quando na minha 7a série (atual 8o ano) tive de ler um de seus livros infantis de crônicas, Um País Chamado Infância. Com linguagem simples e estilo bem-humorado, conseguiu me prender muito a atenção naquela época. A partir de acontecimentos do dia-a-dia (como o primeiro dente ou a glória do "skate"), ele capta belos sentimentos humanos e especialmente nesse livro, trata com carinho sobre a relação entre pais e filhos. Essa semana ao ler a revista Ser Médico do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, soube que ele falecera em fevereiro desse ano aos 73 anos e decidi recordar um pouco de seu trabalho.
Foi gaúcho, judeu, médico, clínico geral e sanitarista, professor de Medicina da Comunidade na Faculdade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) e professor convidado da Brown University e na Universidade do Texas, mas sobretudo foi escritor. Autor de cerca de 80 obras abrangendo romance, crônica, conto, literatura infantil e ensaio, recebeu inúmeros prêmios literários como o Jabuti (1988, 1993 e 2009), o Associação Paulista de Críticos de Arte (1989) e o Casa de Las Américas (1989) . Com tradução em 12 línguas e com adaptações para o cinema, teatro e tevê (como os filmes "Caminho dos Sonhos" e "Sonhos Tropicais"), em 2003 foi eleito para a Academia Brasileira de Letras.
Sua temática trata de fatos do cotidiano enriquecidos com sua tradição judaica, formação médica, a realidade social da classe média e a busca por valores universais e humanistas. Com um estilo de realismo fantástico, parece conseguir tirar uma boa história de qualquer banalidade. Por sua carreira e por seu legado literário o tenho como exemplo a ser seguido. A seguir, parte de uma de suas crônicas:

"A patologia da manhã infantil
À época em que eu era um estudante de Medicina, havia uma curiosa característica no ensino médico: procurava-se mostrar aos alunos os casos mais raros e diferentes, enfermidades cuja descrição só se encontrava em obscuros manuais ou em revistas estrangeiras. Descobri assim que há muitas doenças estranhas. Agora: não tão estranhas quanto as que acometem um garoto de sete anos à hora em que ele tem de acordar e ir ao colégio. Estas doenças têm as seguintes características:
a) São instantâneas. Tão logo o garoto abre os olhos, ele é atacado por uma multidão de vírus, bactérias, fungos, enfim, por toda a fauna que povoa esse planeta e outros.
b) Manifestem-se pelos sintomas mais variados, e, o que mais importante, de conhecimento exclusivo do interessado. Se o garoto diz que está enxergando tudo verde, o que é que você responde? Que ele tem uma visão ecológica das coisas? Que o verde é uma bela cor? Que você está enxergando amarelo, e que portanto você dois formam uma dupla patriótica? E se o garoto diz que está tudo rodando, que é que você faz? Põe-se a rodar ao redor dele, para dar a impressão de que ao menos a autoridade paterna está fixa?
(...)
d) Cessam miraculosamente quando você pronuncia as palavras mágicas. Sim, mas quais são estas palavras mágicas? Sossegue, não se trata de nenhum segredo dos sábios orientais. Tudo o que você tem a dizer é: hoje é domingo, não tem colégio. Pronto. Toda a patologia exótica desaparece como por encanto. O garoto só vai encontrá-la de novo quando se tornar estudante de medicina."

do Livro: Um País Chamado Infância